O Transfer Pricing (TP) no Brasil atingiu um novo patamar de exigência e complexidade. Com a promulgação da Lei 14.596/23 e a regulamentação pela Instrução Normativa (IN) 2.161/23, o país se alinhou definitivamente às diretrizes da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Este movimento substituiu as antigas fórmulas fixas por uma análise econômica profunda, baseada na substância das operações e no princípio do Arm’s Length.
Neste contexto, a documentação deixou de ser um mero cumprimento acessório e se tornou o instrumento de defesa e transparência mais importante de uma empresa perante o Fisco. A documentação robusta é essencial para garantir a conformidade e facilitar a fiscalização. A grande dúvida dos profissionais hoje reside na estrutura do Master File e do Local File — as duas peças centrais da documentação no novo modelo.

1 – O Conceito Base: A Estrutura de Três Níveis e a Nova Exigência
A documentação de Transfer Pricing, conforme o padrão OCDE e adotada pelo Brasil, é estruturada em três camadas:
Master File (Arquivo Mestre): Visão macro do grupo multinacional.
Local File (Arquivo Local): Detalhe das transações da entidade brasileira.
Country-by-Country Report (CbC Report) (Declaração País a País): Distribuição de receitas e impostos globais.
Para a maioria dos contribuintes, o foco principal de elaboração e defesa recai sobre o Master File e o Local File.
2 – O Master File (MF): A Visão Global e a Alocação de Valor
O Master File (MF) é o documento que estabelece o contexto global da empresa. Ele é projetado para dar à autoridade fiscal uma compreensão rápida da estrutura organizacional, da estratégia de negócios e da política global de Transfer Pricing do grupo.
Seu objetivo é dar uma visão ampla e consistente para que a autoridade fiscal entenda a posição da entidade brasileira dentro do grupo multinacional. O Master File serve para mostrar como a empresa, no mundo inteiro, organiza e aplica as regras de TP.
2.1. Conteúdo Mínimo Obrigatório do Master File (MF)
Estrutura Organizacional e Legal: Organograma claro e descrição da estrutura legal e de ownership do grupo.
Descrição do Negócio: Análise detalhada das atividades de negócio, a principal fonte de valor do grupo e as cadeias de suprimentos mais importantes.
Ativos Intangíveis (Foco Crítico): Este é um dos pontos mais sensíveis para a fiscalização global e exige um detalhamento robusto:
Identificação e Ownership: Uma lista dos intangíveis mais importantes (patentes, marcas, know-how, tecnologia) e a identificação clara de quem é o owner legal e econômico desses ativos.
Estratégia de Remuneração: A política global de Transfer Pricing para esses ativos, explicando como a remuneração (royalties, licenças, etc.) é definida e alocada entre as entidades do grupo, e como a criação de valor por esses intangíveis é considerada.
Desenvolvimento e Manutenção: Uma descrição das entidades do grupo que participam do desenvolvimento, aprimoramento, manutenção, proteção e exploração (DEMPE) dos intangíveis, e a política de TP para remunerar as funções DEMPE exercidas.
Atividades Financeiras Intragrupo: Como o grupo se financia globalmente (empréstimos, cash pooling, garantias) e quem gere essas funções.
Posição Financeira e Tributária: Demonstrações financeiras consolidadas e uma lista de acordos fiscais importantes (APAs).
Um Master File bem estruturado prova a coerência global da sua política e estabelece a narrativa que será detalhada e comprovada no Local File.
3 – O Local File (LF): A Prova de Arm’s Length no Brasil
O Local File (LF) é o documento que mais exige rigor e detalhe, pois ele é a documentação específica da jurisdição brasileira. Seu propósito é provar, transação por transação, que a entidade brasileira respeitou o Princípio Arm’s Length.
O Local File foca em detalhar as operações locais da empresa, ou seja, as transações controladas realizadas com partes vinculadas no exterior. É o pilar que sustenta sua defesa em caso de auditoria.
3.1. Conteúdo Crítico: A Análise Funcional (FAR)
A Análise Funcional (FAR) é o coração do Local File e a principal ferramenta da Receita Federal para avaliar a substância.
Funções, Ativos e Riscos: O LF deve detalhar as Funções exercidas pela entidade brasileira, os Ativos empregados (tangíveis, intangíveis) e os Riscos assumidos (Ex.: risco de mercado, risco de crédito).
Substância e Remuneração: A descrição funcional precisa ser personalizada e coerente com a remuneração da entidade brasileira. A Receita está focada em garantir que a remuneração seja compatível com a contribuição e o risco assumido localmente.
3.2. Intangíveis e o Desenvolvimento Local (DEMPE) no Local File
O Local File deve complementar o Master File, focando na perspectiva da entidade brasileira em relação aos intangíveis:
Uso e Remuneração: Detalhar se a entidade brasileira usa intangíveis globais (marcas, patentes) e se a remuneração (pagamento de royalties) é consistente com o valor de mercado, conforme o Princípio Arm’s Length.
Contribuição (DEMPE): Se a entidade brasileira participa do desenvolvimento, aprimoramento, manutenção, proteção e exploração (DEMPE) de intangíveis, é essencial documentar e justificar a remuneração recebida por essa contribuição.
3.3. Benchmarking e Análise Comparativa Robusta
Obrigatoriedade do Comparável Interno: É mandatório analisar comparáveis internos (transações com terceiros independentes) antes de buscar no mercado externo. A documentação deve justificar tecnicamente a exclusão de comparáveis internos, caso não sejam aptos.
Transparência Estatística: O uso de Mediana e Intervalo Interquartil elimina distorções e define o intervalo aceitável de resultados. A documentação precisa ser transparente e replicável para que o Fisco possa verificar a validade do estudo.
4 – Coerência Documental e Risco de Fiscalização
O Master File e o Local File devem ser consistentes.
Master File (Visão Global) vs. Local File (Prova Local): A Receita Federal busca ativamente a inconsistência: se a estratégia global (MF) aloca um determinado risco à entidade brasileira, o Local File (LF) deve provar que a entidade tem a capacidade funcional e financeira para gerir e assumir esse risco. A falha nesse alinhamento é o principal gatilho para aprofundamento da fiscalização.
5 – Boas Práticas para Defesa e Rastreabilidade
A documentação só funciona como defesa se for à prova de auditoria.
Rastreabilidade de Dados: A empresa deve ser capaz de reproduzir as consultas em bases de dados (benchmarking) quando solicitada pela Receita Federal, comprovando a validade do estudo.
Tradução e Suporte: Documentos de suporte redigidos em língua estrangeira devem ser acompanhados de tradução simples para o português (com exceção de inglês e espanhol, onde a tradução é solicitada apenas se requerida pelo Fisco).
6 – A Importância de Estar Preparado
A nova regra de TP exige que a documentação seja um processo contínuo e não apenas um evento anual. O custo de um ajuste ou multa de ofício é sempre exponencialmente maior do que o investimento em uma documentação de alta qualidade e na capacitação da equipe.
Leia também a parte 2 do artigo aqui.



