A adoção do Brasil ao padrão da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) em matéria de Transfer Pricing (TP), formalizada pela Lei nº 14.596/23 e regulamentada pela Instrução Normativa (IN) RFB nº 2.161/23, representa um divisor de águas no cenário tributário nacional. Se, por um lado, essa mudança traz maior alinhamento e transparência internacional, por outro, ela intensifica o rigor da fiscalização e eleva significativamente o risco de penalidades por inconsistências documentais e descumprimento de obrigações acessórias.
Para profissionais de Tax, Compliance e Finanças, é imperativo conhecer o cenário de riscos para a documentação e as obrigações acessórias, como o RTC e a ECF, para garantir a segurança jurídica e a saúde financeira da empresa.

1. O Novo Cenário de Penalidades: O Foco na Substância e Coerência
No modelo anterior, baseado em margens fixas, a fiscalização era objetiva. Hoje, a Receita Federal busca a substância econômica e a coerência entre a política global do grupo e a execução local da entidade brasileira. O Fisco está mais equipado e treinado para buscar falhas na documentação (Master File e Local File) que comprometam a aplicação do Princípio Arm’s Length.
A multa mais severa é acionada quando há um ajuste no valor da transação, resultando em imposto a pagar ou a recolher a maior.
Penalidades Diretas: Ajustes e Multas de Ofício
A penalidade mais grave resulta do ajuste no valor das transações. Se a Receita Federal discordar do preço de transferência praticado e determinar que houve subfaturamento ou superfaturamento, o resultado é a glosa do valor, conforme previsto no Art. 65 da Lei nº 14.596/23:
“O descumprimento de obrigação principal ou acessória relativa ao imposto sobre a renda e à Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) em decorrência da aplicação do disposto nesta Lei sujeitará o contribuinte às penalidades previstas na legislação específica.”
Na prática, o ajuste no TP sujeita o contribuinte à:
- Multa de Ofício Padrão: 75% sobre a totalidade ou diferença do imposto não pago devido ao ajuste de Transfer Pricing.
- Multa Qualificada: Em casos comprovados de fraude, dolo ou simulação, a penalidade pode ser agravada para até 150%.
- Juros: Além da multa, há incidência de juros de mora (Selic) desde a data de vencimento original do imposto.
2. Prazos Críticos e Multas por Descrições na Documentação
O novo cenário de TP introduziu prazos cruciais e obrigações de documentação (Master File e Local File) que geram multas por descumprimento de obrigações acessórias (Art. 57 da Lei nº 14.596/23, regulamentado pelo Art. 64).
A. Local File (LF) e Master File (MF)
A documentação deve ser preparada anualmente e estar pronta antes do prazo final de entrega da Escrituração Contábil Fiscal (ECF). Contudo, a apresentação à Receita Federal é feita mediante intimação, conforme o Art. 53 da IN RFB nº 2.161/23:
“O contribuinte deverá apresentar a documentação de preços de transferência à RFB no prazo de até 90 (noventa) dias, contado da data de intimação específica para esse fim, prorrogável por igual período, a critério da RFB.”
Riscos e Penalidades na Entrega:
- Não Apresentação no Prazo: A multa é gerada pela impossibilidade de apresentação dentro deste prazo de 90 dias, ou pela apresentação incompleta/incorreta. A penalidade por omissão ou incorreção na documentação é de R$ 50.000,00 por mês ou fração, podendo ser aumentada se a omissão persistir após intimação.
- Inconsistência da Análise Funcional (FAR): A Análise Funcional (FAR) é o cerne do Local File. A documentação que não reflete a realidade operacional do contribuinte — ou que utiliza descrições genéricas — é considerada inconsistente. O Art. 54 da IN RFB nº 2.161/23 estabelece a estrutura para o Local File, e falhas neste detalhamento são o principal foco da fiscalização.
B. Registro de Transações com Commodities (RTC)
Esta é uma das obrigações acessórias mais recentes e de maior risco de rotina, introduzida para empresas que negociam commodities sujeitas ao método PIC (Preço Independente Comparável).
O Art. 64, caput, da IN RFB nº 2.161/23 (na redação dada pela IN RFB nº 2.246/2024) define:
“Para fins do disposto no § 3º do art. 37, nas hipóteses em que o método PIC for aplicado com base no preço de cotação, o contribuinte efetuará o registro da data ou do período de datas acordado pelas partes para precificar a transação em sistema disponível no e-CAC da RFB, até o 10º (décimo) dia subsequente ao decêndio em que ocorreu a transação.”
Riscos e Multas do RTC:
- Prazo Crítico: O registro deve ser feito até o 10º (décimo) dia subsequente ao decêndio em que ocorreu a transação. O descumprimento deste prazo é sujeito a multas por descumprimento de obrigação acessória.
- Multas por Omissão/Incorreção: O § 4º do Art. 38 da IN RFB nº 2.246/2024 estabelece que, se houver descumprimento dos prazos ou das obrigações previstas, serão aplicadas penalidades por descumprimento de obrigação acessória. Isso se aplica mesmo que a empresa não tenha utilizado o método PIC , o que amplia consideravelmente os custos de compliance para empresas de commodities.
C. Inconsistências na ECF e Registros
O contribuinte deve incluir as informações de Transfer Pricing na Escrituração Contábil Fiscal (ECF). A multa por não atendimento aos requisitos da ECF, incluindo os registros de TP, pode atingir até R$ 100.000,00 por incorreção ou omissão. A Receita Federal busca ativamente o alinhamento entre:
- Documentação (Local File)
- Registros Fiscais (ECF)
- Dados Reportados (RTC)
Qualquer desalinhamento aciona um alerta imediato de fiscalização.
3. A Estratégia de Mitigação: Proatividade e Consistência
O risco é mitigado através de uma documentação à prova de auditoria e de uma rotina de compliance proativa.
A. O Foco na Defesa Documental
- Coerência da Narrativa (LF vs. MF): A Receita Federal buscará ativamente se a política global (MF) está sendo aplicada de forma coerente na subsidiária brasileira (LF). A inconsistência é o caminho mais rápido para a multa.
- Qualidade do Benchmarking: O Local File precisa comprovar que os preços praticados refletem as condições de mercado. A documentação deve detalhar a seleção de comparáveis, os ajustes estatísticos (Mediana e Intervalo Interquartil) e a justificativa econômica para o método escolhido.
- Substância e Análise Funcional: Não utilize templates genéricos. A Análise Funcional deve ser customizada e refletir a realidade operacional da empresa, comprovando a alocação de risco e ativos.
B. Monitoramento Contínuo e Revisão
O risco diminui com a frequência. A melhor estratégia é tratar a documentação de TP como um processo vivo, com revisões trimestrais (health checks), e não como um evento anual. Isso permite ajustes proativos nos preços ou margens antes que o desvio se torne uma falha de compliance irreparável.
4. As Fases da Auditoria e a Importância da Preparação Contínua
A fiscalização de Transfer Pricing segue um ciclo que exige preparação constante do contribuinte:
A. Fase 1: Análise de Risco (Cruzamento de Dados)
Nesta fase, a Receita Federal utiliza ferramentas de cruzamento de dados (ECF, CbC Report e outras obrigações acessórias) para identificar anomalias e incoerências entre o resultado da entidade brasileira e a política global do grupo.
- Alertas do Fisco: Falhas na ECF, discrepâncias entre os dados reportados e a documentação, ou a alocação de risco em jurisdições de baixa tributação acionam o alerta para a fiscalização aprofundada.
B. Fase 2: Intimação e Solicitação de Documentos
Uma vez acionado o alerta, o contribuinte é intimado a apresentar a documentação (Local File e Master File) no prazo de 90 dias (Art. 53 da IN 2.161/23).
- O Risco da Impreparação: A incapacidade de apresentar uma documentação completa e defensável neste prazo é, por si só, uma falha de compliance sujeita à multa acessória (R$ 50.000,00 por mês ou fração).
C. Fase 3: Análise Detalhada e Defesa
A Receita Federal realiza a análise aprofundada do Local File, focando na Análise Funcional e no Benchmarking. O contribuinte deve estar pronto para justificar cada transação, a alocação de risco e a escolha do comparável.
- Suporte Prático: A documentação deve ser apoiada por evidências operacionais (ata de reunião, e-mails, fluxos de trabalho) que comprovem a execução prática da política.
5. A Estratégia de Mitigação: Proatividade Documental e Ecossistema
O risco é mitigado através de uma documentação à prova de auditoria e de uma rotina de compliance proativa. A melhor estratégia contra multas é tratar a documentação de TP como um processo vivo e auditável.
A. Monitoramento e Revisão Contínua
- Revisões Trimestrais (Health Checks): A melhor estratégia é realizar revisões trimestrais para identificar e corrigir desvios na margem antes que se tornem problemas anuais. Isso permite ajustes proativos nos preços ou margens.
- Tecnologia para Rastreabilidade: A adoção de soluções tecnológicas que automatizam o mapeamento de dados e a geração de relatórios de compliance é crucial para garantir que os dados de execução correspondam à política documentada.
B. O Foco na Capacitação e na Defesa Técnica
A TP Digital, através do seu ecossistema, enfatiza que a preparação para a auditoria começa na primeira transação do ano. O treinamento da equipe é fundamental para que o time interno entenda o racional do TP e saiba sustentar a defesa sob fiscalização.
O cenário é claro: O custo de um ajuste ou multa de ofício é sempre exponencialmente maior do que o investimento em uma documentação de alta qualidade e na capacitação da equipe.



